Em uma cama de casal com cobertas cor de vinho, uma mulher de codinome Scarlet é chupada e lambida por dois estranhos, completamente alheia às câmeras que a filmam. Estamos em um set de filme pornô, mas há algo de estranho no ar: a atriz está sentindo prazer, e a diretora, uma alemã de meia-idade, não está gritando “Corta! Corta!” Scarlet se arqueia, geme e começa a tremer incontrolavelmente. Ela tem orgasmos múltiplos, e cada segundo de êxtase é devidamente registrado. É só quando a moça colapsa que a berlinense Petra Joy corta a tomada, não sem exibir um largo sorriso. Por essas e outras, a atriz e seus colegas recusariam os cachês ao fim da produção de The Female Voyeur. O argumento deles é que se divertiram muito ao longo de uma semana de orgia para cobrar qualquer coisa. É, há algo de estranho no ar. Mas que está se tornando cada vez mais comum.
Petra Joy – ao lado da sueca Erika Lust, diretora do premiado Cabaret Desire, ao qual pertence a cena que abre esta reportagem – é expoente do art-core, gênero de filmes pornográficos dirigidos por mulheres a partir de uma perspectiva feminina e com especial apreço estético. O que isso significa? No pacote estão tomadas em travelling de corpos nus e close-ups de expressões faciais, enredo de qualidade e menos enfoque do que o normal nas penetrações; em suma, as produções podem ser definidas pela equação “menos pênis + mais beleza”. O melhor de tudo é que a maioria das estrelas dos elencos é amadora – mulheres reais, e não atrizes profissionais, que transam e curtem transar sob as lentes das filmadoras. E longe delas também.
FEMINISMO NO PORNÔ
O art-core tem consensualmente uma só idealizadora e uma “data” de origem muito bem demarcada. Candida Royalle, uma das mais respeitadas atrizes pornô da “época de ouro” da indústria (1960 e 1970), está para o gênero como Buttman está para o pornô convencional. Em 1984, aos 34 anos e com 25 papéis como protagonista, ela decidiu encarar as câmeras pelo outro lado. Fundou a Femme Productions, que procurou satisfazer um crescente público de senhoritas e senhoras emancipadas pela segunda onda feminista. “Sempre achei o pornô chato, previsível, sexista e desprovido de voz feminina”, diz Candida. “Reparei que muitas mulheres, como resultado dos movimentos de liberação feminina em 1960 e 1970, estavam interessadas em filmes sensuais.”
Carícias entre lésbicas em "The Female Voyeur", de Petra Joy: atores se divertiram tanto nas filmagens que dispensaram o cachê
Na época, TV a cabo e videocassete já eram realidade, permitindo que os pornôs fossem vistos em casa, em vez de naquelas tenebrosas salas de cinema. A Femme Productions, no princípio, filmava uma atroz mistura de filme pornográfico com videoclipe de rock na qual o pano de fundo eram fantasias femininas. Imagine o clipe Holy Diver, da banda de heavy metal Dio, só que com gostosas no lugar de bárbaros e o dobro de fumaça no set. Bem, não tardou para Candida perceber que precisaria de reforços para tomar a indústria pornô pelos bagos. E, se tinha alguém que entendia de tomar as coisas pelos bagos, era a porn star Nina Hartley. Se você não a conhece pela atuação em clássicos pornô como Pajama Party X e Educating Nina, talvez se lembre dela em Boogie Nights, em que encarna a ninfomaníaca companheira de Little Bill (personagem de William H. Macy).
Ao longo de três décadas, Nina foi – e ainda é – uma das mais emblemáticas figuras do universo de filmes adultos. O fato de a atriz não só estrelar como também endossar “politicamente” as produções de Candida foi o primeiro sinal do poder de influência do art-core (que, à época, ainda não tinha esse nome – nem qualquer outro) no mercado pornô convencional. Com a loira à frente de elencos que mesclavam atores profissionais e amadores, a Femme Productions inauguraria, no fim dos anos 1980, os alicerces da “erótica feminina”. A base desta, nas palavras de Candida, “eram histórias realistas encenadas por homens e mulheres com os quais o público pudesse se identificar”.
Colocar Nina Hartley no centro dessa estética foi um golaço, e a mí dia se extasiou com a história de um pornô com apelo ao público feminino. Não deu outra: aquilo virou hit. Mas um hit prematuro. “Acho que me adiantei um pouco para fora da curva. Tive de esperar para que mais pessoas me alcançassem. Foi só nos anos 2000 que comecei a ver pessoas como Petra Joy e Erika Lust seguindo meus passos”, diz a “mãe” do art-core.
INVASÃO AMADORA
Nina Hartley passou pelos filmes de Candida como uma espécie de santa abençoando o gênero – e carregando consigo uma procissão de estrelas menores, como Missy e Shanna McCullough. Após um primeiro sopro, contudo, as profissionais mais renomadas do mercado standard se afastariam discretamente do art-core. Em parte por uma questão de grana (pagavase menos), em parte porque ele se apagou nos Estados Unidos da década de 1990 para só emergir no século seguinte – e com epicentro europeu.
Petra Joy (à direita) no set de "The Female Voyeur"
O primeiro nome a destacar dessa segunda etapa é Petra Joy, que cunhou o nome do gênero em 2004 e levou amadoras para o art-core. Antes disso, ela trabalhava como diretora de TV e tinha a sexualidade feminina como tema recorrente de seus documentários. Os 20 anos no ramo lhe trouxeram uma certeza: a de que não curtia a maneira como a mídia e a pornografia em voga vinham retratando o desejo feminino. Decepcionada, começou então a flertar com a ideia de fazer seus próprios pornôs. E decidiu fazê-los a partir de uma perspectiva feminina.
Sexual Sushi, de 2006, foi filmado durante alguns fins de semana em um flat alugado e teve como protagonistas um casal de amigos da diretora. Encerradas as gravações, um ano inteiro correu até que Petra conseguisse levar sua criação para as locadoras. Os distribuido res achavam que a ausência de astros e a abundância de pretensões artísticas tornariam os 30 minutos do filme invendáveis. Mas, para surpresa geral, Sexual Sushi acabou voando das estantes. “As pessoas não aguentavam mais o junk food de sempre”, brinca.
O sucesso da produção a impeliu a repetir a fórmula (a fórmula: estética artística, foco no prazer feminino, elenco de amadores…) nos trabalhos seguintes. “Meus performers não são atores de fato, e sim pessoas comuns. Eles dividem minha visão de pornô alternativo e querem ver suas fantasias virarem realidade nas filmagens”, explica.
A "mãe" do art-core, Candida Royale (acima), e a "madrinha" do gênero, a atriz Nina HartleyMaria Evans-von Krbek – na “vida real”, cientista literária e tradutora – é uma das principais atrizes de Petra. Ela protagonizou os dois últimos (e melhores) filmes da diretora, A Taste of Joy (2012) e Te Female Voyeur (2011). O trabalho com Petra, a bem da verdade, não foi sua primeira incursão em um set pornô. Maria confessa ter atuado antes em “um filme bem mainstream”. O que importa é que ela parece estar genuinamente feliz. “No art-core eu me divirto mesmo. Como deixo de ficar focada apenas na performance, consigo ter orgasmos reais”, ressalta. Maria conta ainda que os “atores” de Petra se dão tão bem que transam entre si até quando as câmeras estão desligadas. “Todos os meus artistas têm vidas paralelas e empregos em tempo integral. Eles não querem se tornar estrelas do pornô para ter de gozar quando o diretor manda. Eu não tenho script, e eles basicamente fazem o que estão a fim”, afirma a diretora.
FUTURO DO PRESENTE
Enquanto Petra Joy filmava seu artcore em Berlim com pegada amadora e recheado de não atrizes, a 1 500 quilômetros de distância, em Barcelona, a sueca Erika Lust apostava suas fichas em elencos mistos de atores profissionais e não profissionais. Com uma câmera Canon 5D na mão e uma ou duas ideias pervertidas na cabeça, Erika inadvertidamente estendeu o círculo de influência do art-core para dentro de um território dominado até então pelo pornô mainstream. Seu primeiro filme, The Good Girl, apresentou um elenco de atores amadores pontuado por uma notável atriz pornô, a tcheca Claudia Claire. Em um total de seis filmes, todos aclamados (o mais recente, Cabaret Desire, venceu o Oscar da categoria, o Feminist Porn Awards), a diretora sempre conseguiu escalar atrizes conhecidas, como Sofia Prada, Yoha Gálvez e Sonia Baby. “Ainda me surpreende o fato de eu conseguir, com relativa facilidade, contratar atores mainstream mesmo pagando bem menos do que um filme mainstream pagaria”, diz. “E, por incrível que pareça, isso nunca se mostrou um problema; eles se envolvem no projeto com afinco.”
Se, por um lado, o trabalho de Erika com atrizes profissionais é recebido por puristas do art-core (Petra à frente) com uma bela torcida de nariz, por outro, é reconhecido justamente por mostrar um ângulo raro: veteranas da indústria pornográfica tendo prazer diante das câmeras. É de supor que os filmes de Erika comovam muitas dessas divas (e parte do público) exatamente porque apresentam um sexo “mais fofo” – sem cenas de anal e de homem ejaculando no rosto da parceira, por exemplo.
Cena de "A Taste of Joy": o filme mais recente de Petra Joy tem elenco formado por rostos desconhecidos no mundo pornô e foco no prazer feminino
O mais interessante: pautar um pornô a partir da visão feminina torna o art-core perfeito para assistir a dois. Indo além, salpicar amadoras em um set dominado por uma estética artística feminina talvez seja a maior revolução desse mercado desde a criação de serviços de streaming, como o RedTube e o X-Videos. Porque, afora amadoras e transas de verdade, o art-core oferece um pacote que a maioria dos vídeos de sexo amador não oferece: aprumo estético, roteiros que suspendem a tensão e sexo magnificamente bem filmado.
Graças a todas essas diretoras, muitas mulheres que antes ficavam ressabiadas com filmes pornográficos hoje se assumem como fãs do estilo. Erika é pouco modesta quando fala do impacto do art-core no futuro da pornografia: “O gênero é uma parte crescente de um mercado independente e alternativo dentro dessa indústria. Aos poucos serão derrubadas as grandes companhias que insistirem em retratar o sexo como um ato despido de paixão, estéril, plástico e impossível de criar identificação”. Talvez a previsão seja demasiado apocalíptica. Ainda assim, o poder de persuasão do art-core não deve ser subestimado. Faça o teste. Chame sua mulher e aperte o play.
fonte: playboy.com